sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Brincar é coisa séria



Faz-de-conta na escola a a importância do brincar




É pelo símbolo, pelo faz-de-conta como uma de suas expressões, que podemos reunir ou imaginar as coisas no irrealizável de sua plenitude. O faz-de-conta possibilita-nos desfrutar uma presença e concede-nos a ilusão da permanência de alguma coisa, por si mesma sempre passageira, eventual, incompleta.


Sabemos que as crianças gostam de brincar de faz-de-conta em sua casa, sozinhas, com os amigos e, eventualmente, com um adulto significativo para elas, desde que este não interfira muito. Se a criança não está doente, com fome ou irritada, brincar é sua forma de ser e estar no mundo. É nas brincadeiras que ela encontra sentido para sua vida, é nelas que as coisas se tornam, são construídas de muitos modos e repetidas tantas vezes quantas a criança quiser. Qual a importância do brincar na escola?


Recordemos, com a ajuda do dicionário (Houaiss), alguns significados etimológicos de escola: divertimento, recreio, lugar de lazer, ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil, lugar de estudo, aula. A escola, assim, foi pensada como um espaço onde podíamos nos divertir, onde tínhamos um tempo livre para pensar, estudar. Lembro esses significados para defender que a escola pode - e deve - ser um lugar de brincadeiras e jogos, de atividades que fazem sentido para as crianças. Agora que se tornou obrigatória para elas, ou a escola leva em conta aquilo que é importante para as crianças, ou estará condenada a se impor de modo forçado, gerando uma tensão insuportável entre as intenções dos adultos e as reações delas. Por que não recuperar o sentido original de escola? Pergunto isso porque, mesmo na escola de educação infantil, nem sempre se reconhece a importância do brincar como função sociocultural e educacional e se insiste, muitas vezes, em antecipar práticas próprias aos trabalhos servis, infelizmente comuns na escola fundamental.



Passemos agora a uma análise dos significados de brincar expressas em um dicionário (Houaiss), agrupando-os em uma versão "positiva" ou "negativa", segundo os interesses da escola. No primeiro caso, brincar é "distrair-se com jogos infantis, representando papéis fictícios", "entreter-se com um objeto ou uma atividade qualquer (pular, correr, agitar-se)", "tirar gozo, distração ou proveito, desfrutar". No segundo caso, brincar é "gracejar, fazer zombaria, debochar", "não demonstrar interesse, não dar importância, não levar (algo) a sério, agir com leviandade ou imprudência". Na perspectiva das crianças, todas essas versões são válidas e expressam a significação que atribuem às brincadeiras.


 Para os adultos, principalmente se o contexto for o cotidiano da sala de aula, os significados agrupados em segundo lugar podem resumir, talvez, a maior parte de suas queixas. Como compreender e possibilitar na escola as brincadeiras das crianças em todas as suas versões? Como aceitar que jogos e brincadeiras para as crianças são tudo isso a que o dicio­nário remete? Como trabalhar as brincadeiras a favor de nossos objetivos educacionais, sabendo que, se não for assim, as crianças sempre ganharão nessa disputa, mesmo que isso possa implicar algo negativo para elas? Como fazer das zombarias, do desinteresse, da leviandade ou da imprudência oportunidades de aperfeiçoamento, oportunidades de receber ensinamentos em direção ao conhecimento, ao respeito, à reciprocidade e à vida coletiva? Já se tentou - e ainda se tenta - evitar na escola os aspectos "negativos" dos jogos e das brincadeiras contendo, reprimindo, castigando, impedindo sua expressão. Mas será que isso funciona? Vale a pena anular, com a ilusão de que assim ficaremos livres do problema, algo que faz parte do que é mais próprio de todas as crianças em seus melhores momentos da vida?



A divisão das brincadeiras em sua expressão positiva ou negativa aqui proposta tem também o obje­tivo de salientar que na escola de educação infantil, onde as brincadeiras são "inevitáveis", ainda que se tenha de conviver com seus diferentes significados, os aspectos positivos tendem a prevalecer. Ao contrário, na escola fundamental, onde jogos e brincadeiras são evitados ou têm pouco lugar, os aspectos negativos predominam, seja na sala de aula, seja em seus intervalos.


Proponho, agora, que consideremos dois aspectos "positivos" das brincadeiras: "distrair-se com jogos infantis, representando papéis fictícios" e "tirar gozo, distração ou proveito, desfrutar". Por que não transformá-los em objetivos ou recursos escolares em favor da aprendizagem e do desenvolvimento de nossos alunos? Qual o valor do faz-de-conta na escola? Como usar, por exemplo, jogos para o ensino de conteúdos escolares?


O faz-de-conta refere-se ao "mundo do imaginário, da fantasia" (Houaiss). Fantasia é "criar pela imaginação", trata-se de algo ficcional, sem ligação estreita e imediata com a realidade. Do ponto de vista etimológico, faz-de-conta é sinônimo de quimera, "monstro mitológico que se dizia possuir cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de serpente e lançar fogo pelas narinas" (Houaiss).


Por que jogos e brincadeiras de faz-de-conta são fundamentais ao desenvolvimento das crianças? Para Piaget, essas atividades indicam que as crianças já podem representar, isto é, já possuem função simbólica. Representar significa poder tratar A como se fosse B, ou seja, substituir um objeto, pessoa ou acontecimento por seus equivalentes funcionais: outros objetos ou pessoas, encenações e toda sorte de faz-de-conta. Representar é uma nova forma de assimilação que expressa a qualidade simbólica de nossa inteligência. O símbolo, como sabemos, é qualquer palavra, gesto, objeto ou índice que tem a propriedade de reunir, de recuperar aquilo que partiu, que não é ou está presente. Se a mãe sai para trabalhar ou não se dispõe a ficar junto da criança, brincar de casinha ou de boneca pode ser um jeito de - ao seu modo - tê-la junto de si. Trata-se de uma forma de assimilação, pois para a criança consiste em incorporar ao seu mundo objetos, pessoas ou acontecimentos significativos. É certo que no começo essa forma de assimilação é "deformante", uma vez que a criança assimila ou revive situações fazendo deturpações de todos os tipos. Trata-se, portanto, de uma forma livre de representação em que as coisas imaginadas nem sempre podem corresponder ao que a criança cria ou propõe como seus representantes. Ao contrário, pode ser também um rigoroso exercício de "imaginação reprodutiva" ou "imitação representativa" em que os melhores esforços da criança estão a serviço de um fazer igual, de repetir, dentro dos limites de suas possibilidades.


Graças ao faz-de-conta, a criança pode imaginar, imitar, criar ou jogar simbolicamente e, assim, pouco a pouco, vai reconstituindo em esquemas verbais ou simbólicos tudo aquilo que desenvolveu em seu primeiro ou segundo ano de vida. Com isso, pode ampliar seu mundo, estendendo ou aprofun­dando seus conhecimentos para além de seu próprio corpo; pode encurtar tempos, alargar espaços, substituir objetos, criar acontecimentos. Além disso, pode entrar no universo de sua cultura ou sociedade aprendendo costumes, regras e limites. No faz-de-conta, aquilo que a criança cria está atribuído aos objetos ou acontecimentos de sua história ou fabulação. Ao mesmo tempo, são objetos e acontecimentos que só se tornaram como tais pelas criações dela.


 lembrando que "sociedade do conhecimento" é um dos modos de se caracterizar nossa sociedade atual. Com a tecnologia da informação, dos transportes, da comunicação, por exemplo, o mundo virou um grande faz-de-conta, e o espaço e o tempo de nossas vidas estão podendo ser encurtados, estendidos, aproximados de muitos modos. Neste mundo, ler, escrever, calcular, experimentar, explicar e criar são expressões de formas de descentração. As pessoas estão cada vez mais se aprofundando para dentro de si mesmas ou exteriorizando-se em objetos ou tecnologias. Estas se sofisticam e só fazem melhorar suas "facilidades" e promessas. Graças aos diferentes sentidos de um faz-de-conta. Faz-de-conta que é para todos, por exemplo. Como conviver com significados tão desiguais? Como a escola - com seus faz-de-conta - pode emancipar as crianças de sua ignorância e miséria? Como pode emancipá-las favorecendo seus processos de desenvolvimento? Como pode recorrer aos jogos e às brincadeiras para incluir de fato as crianças em ações que façam sentido para elas e que lhes possibilitem, quem sabe, um mundo melhor?




Autoria: Lino de Macedo é professor titular de Psicologia do Desenvolvimento do Instituto de Psicologia da USP.



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